Jean Carlos Azuos, Curador do Galpão Bela Maré, na favela Nova Holanda, Rio de Janeiro, faz um depoimento sobre o centro cultural fundado em 2011 - e hoje modelo de instituição artística fora das rotas hegemônicas na cidade. Seu estatuto estético, pedagógico e político transborda os sentidos triviais da arte e visa reconhecer as individualidades dos territórios populares colaborando na construção cidadã.
O ESPAÇO
Em 2011, uma antiga fábrica deu vida, espaço e sentido ao Galpão Bela Maré, localizado às margens da Avenida Brasil, em Nova Holanda, uma das 16 favelas que compõem o Conjunto de Favelas da Maré no Rio de Janeiro. O centro cultural representa e afirma o investimento institucional do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro em parceria com a produtora Automatica, na construção de um lugar alternativo e singular no cenário metropolitano das artes .
O espaço reúne em sua arquitetura um pequeno acervo, espaço de leitura com uma extensa estante articulada que é abrigo de centenas de livros sobre arte, história da arte e cultura geral; salas de atividades educativas; e um salão principal para exposições. Foi inaugurado com o objetivo de colaborar para a democratização e difusão de todos os tipos de expressões artísticas, desenvolvendo práticas e programações que colaboram para a construção e conformação de outros imaginários possíveis, na descentralização tanto dos equipamentos culturais quanto das possibilidades de fruição estética na cidade.
Em perspectiva, visamos reconhecer as individualidades dos territórios populares, de modo a efetivar a construção cidadã, bem como a usufruir de seus direitos plenos subtraindo juízos de valores hegemônicos, que estigmatizam, criminalizam e são omissos a estas realidades territoriais.
Conjuramos, portanto, ser um espaço que transborda os sentidos triviais da arte, expandindo práticas em torno do afeto e da acolhida, movimento vetor do nosso trabalho - na construção de caminhos para que diversos repertórios estéticos e culturais, dentro e fora das favelas, se cruzem, contaminem e fortaleçam juntos, espelhando referenciais contundentes ao nosso trabalho, também nos projetando à cena da produção de arte do País.
TRAVESSIAS
Até 2017, as grandes programações do espaço giravam em torno das importantes edições da exposição Travessias - Arte Contemporânea na Maré. Somadas, as mostras reuniram mais de 50 artistas de todo o Brasil e colocaram a Maré e seus habitantes no mapa das artes visuais brasileiras. Estabeleceram-se outras perspectivas espaciais da arte na cidade, criando fluxos contínuos de pessoas de todas as partes do Rio de Janeiro e além, rumo a Nova Holanda.
A partir de então, o Galpão está aberto regularmente de terça a sábado e recebe outras tantas programações e mostras que dão continuidade aos processos de forma ininterrupta. O ano de 2017 potencialmente registra em nossa trajetória a urgência por marcar a favela como espaço possível para a arte ser e estare, assim, mobilizar encontros, protagonismos e dinâmicas até então pouco óbvias.
O trabalho passou a construir processos cada vez mais consistentes por meio da arte, ascendendo modos de fazer, práticas curatoriais, elaborações experimentais lideradas por pessoas que reverberam a diversidade e a composição de territórios populares, o que considero a grande chave para o desenvolvimento complementar, e muito fundamental ao trabalho que vem sendo construído até hoje.
Os processos de curadorias expositivas e de programação no Galpão Bela Maré, são segue desenhando práticas descentralizadas e implicadas politicamente. Convocam experiências constituídas no Galpão Bela Maré, articulando movimentos de resiliência e criação diante da ordem do inconsciente em um país "cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias, brancas",[1] de modo a espelhar e reconhecer outras múltiplas presenças em nossa construção cultural e produção artística.
Neste sentido, impulsionamos práticas curatoriais, educativas e experimentais e outras que mobilizam distintas narrativas, mitologias individuais, percursos e repertórios para constituir uma totalidade. A crença do trabalho não está a serviço do mero vislumbre plástico, mas de uma universalidade das possibilidades nas interlocuções com as expressões e linguagens, em paralelo aos diálogos institucionais, com o território, as subjetividades e suas recepções.
A insistência é uma importante ferramenta em metodologias que desafiam e contestam as construções de “superioridades”. Em síntese, partimos do pressuposto apresentado por Diane Lima: "O principal desafio de instaurar uma prática curatorial em perspectiva passa pela compreensão de que o que estamos fazendo é política".[2]
SEDIMENTAÇÕES
A partir destas constatações, seguimos navegando por rotas e transviamentos de um trabalho essencialmente ancorado em escolhas para borrar as fronteiras que cerceiam as hibridações e invisibilizam sujeitos/as e suas subjetividades, questões, territórios periféricos e potências nos circuitos artísticos utópicos que ainda regem a contemporaneidade.
Entender a presença como estabelecimento de políticas, de forma que possamos, a partir destes indicadores, assumir nossa responsabilidade enquanto instituição em descentramento, mobilizando programações e interações amplas nas quais os corpos urgentes, racializados, interditos e tantas outres possam usufruir de um espaço artístico em sua plenitude, com todas as ferramentas que este possa oferecer por meios estratégicos de suporte e visibilidade.
Anunciar a partir de práticas e utopias institucionais, novas configurações narrativo-visuais no processo de construção de outras cenas, junto aos desejos e riscos que as armadilhas da arte contemporânea propõem, nos parece uma aposta política no sentido das interseções e ações estéticas efetivas possíveis, pautadas por uma diversidade de subjetividades e territórios historicamente invisibilizados.
A criação e assentamento da Escola Livre de Artes - ELÃ em 2019 nos revela um caminho precioso, dando conquista e sentido sempre desejados ao projeto do Galpão, ao estabelecer para além de todas as frentes aqui costuradas e narradas, uma perspectiva de encaminhar processos de educação e arte com mais capilaridade.
Contribuindo para a cena, a escola já formou dezenas de pessoas artistas, territorializadas em espaços periféricos e populares, e marcando a Bela Maré como território de encontro, troca, proposição e diálogos sobre amplas narrativas, diversidade de corpos, vivências e plasticidades outras.
Nossas experiências práticas, conceituais e experimentais evidenciam compreensões e leituras contundentes de processos curatoriais, educacionais, programações e outras ações - campos conectados às questões decoloniais, dissidentes, multiplicadora de protagonismos, que apontam para gestos de resiliência e criação intrinsecamente políticas.
Aproximações com poéticas que refletem os repertórios produzidos por artistas racializados, mulheres, pessoas trans, periféricas, como ferramentas "de discussão dos problemas enfrentados por essa população e os meios encontrados para a superação desses obstáculos",[3] desdobra constantemente o esforço de alongar os sentidos das imagens e narrativas dominantes. Percurso aplainado com cadência e cuidado ao longo de uma década, adensado e aprofundado nos últimos anos, que marca também a série de programações desenvolvidas na pandemia durante os anos de 2020 e 2021.
Assim, instituímos na experiência a provocação de repensar papéis e agentes, o circuito, as projeções, acreditando nas possibilidades de estabelecer um campo artístico e sua relação com a cidade, de forma múltipla - mais negra e não branca, mais feminina e plural em corpos, linguagens e todas as aberturas por estas suscitadas. Temos, contudo, a centralidade de elaborar consciências coletivas por meio da arte de repensar, reimaginar, renarrar espaço-tempo(s), subjetividades, seus conceitos e repertórios, apontando as pluralidades que nos identificam e compõem.
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- FOOTNOTES
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[1] GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro Rio de Janeiro, n. 92/93 (jan./jun.), p. 69-82, 1988.
[2] LIMA, Diane. Não me aguarde na retina.SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos , São Paulo (Rede Universitária de Direitos Humanos), v. 15, n. 28, p. 245 - 257, dez. 2018.
[3] PAULINO, Rosana. Diálogos Ausentes, Vozes Presentes. Disponível em encurtador.com.br/iptSY. Acesso em 3/4/2022.
IMAGE CREDITS
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Bela Maré Façade. Photo: Douglas Lopes
Galpão Bela Maré. Metropolis Transcultural Exhibition Closure, 2019. Photo: Marcia Farias